Paulo Araújo
Motociclista, jornalista e comentador desportivo
OPINIÃO
Do avião à moto
O leitor já alguma vez reparou que há uma relação
interessante entre a aviação e o motociclismo, através de várias firmas construtoras de aviões que também faziam
motos?
andardemoto.pt @ 26-4-2018 00:12:44 - Paulo Araújo
Os conhecimentos técnicos necessários para pôr um avião a voar tornavam a projecção e construção de um veículo de duas rodas coisa relativamente simples, e não raro permitia alargar as actividades industriais a produtos com um apelo mais universal do que um jacto militar, cujo único cliente, em princípio, é o governo.
O exemplo mais conhecido de uma marca que fazia ambos, claro, é a BMW, cujo logo de segmentos alternantes de azul e branco ainda hoje simboliza uma hélice em movimento. A BMW foi também praticamente a única a ter as duas vertentes em produção ao mesmo tempo: normalmente, foi depois das guerras mundiais, e das resultantes restrições ao fabrico de armamento, que as fábricas se viraram para a produção de veículos de duas rodas, até para satisfazer uma procura desesperada de transporte barato.
Quer isto dizer que, enquanto faziam aviões, não faziam motos,
e quando começaram a fazer motos, já não faziam aviões. Quando se fala de
restrições ao fabrico, estas abrangiam, claro, os países perdedores, como a
Alemanha, Itália e Japão, mas a lista de fabricantes de ambos os tipos de
veículo não se limita a estes. Aliás, um dos primeiros exemplos fora na norma é
a inglesa Martinsyde, formada já em 1908, começando por construir um monoplano
(avião de uma asa só) que acabou destruído numa tempestade pouco depois. Só
quando chegou o biplano S.1 de 1914 é que a Martin-Handasyde, de seu nome
completo, se tornou num fabricante de aviões de sucesso.
Por alturas da Grande Guerra de 14-18 era o terceiro maior fabricante de aviões da Grã-Bretanha, com instalações em Brooklands e uma fábrica em Woking, ambos no condado de Surrey. Acabou a guerra, e a Martinsyde virou-se para o fabrico de motos, a partir de 1919, tendo para tal adquirido os direitos, a um tal Howard Newman, de duas motos de capacidades diferentes: uma 350 monocilíndrica e uma bicilíndrica em V de 677cc que tinha um muito pouco habitual desenho de válvulas com o escape sobre a admissão, em vez de dispostos radialmente na cabeça.
A moto maior apresentava um quadro diamante com forqueta Brampton, mudanças manuais e caixa de três velocidades, feita sob licença da AJS. O motor ganhou fama de muito flexível e fiável, ganhando prémios e mesmo os Seis Dias da Escócia, um Trial antecessor dos actuais ISDE. Nem faltava um modelo com sidecar, e em 1922 a marca ainda ampliou a gama com um modelo de 738cc, que podia atingir os 130 Km/h. Infelizmente, um grande incêndio forçou a firma a liquidar em 1922, tendo os direitos de fabrico sido adquiridos pela Bat, que no entanto também fechou em 1925.
Do lado do Eixo, a aliança Nazi
com a Itália e o Japão (além de outros países secundários como a Hungria e
Finlândia) tinha vários exemplos de indústria aeronáutica virada moto. É sabido
com as primeiras Vespas da Piaggio foram feitas a partir de trens de aterragem
dos caças italianos, usando motores de 90cc que serviam para recolher as rodas
dos bombardeiros pesados. Em Varese, tinha sido fundada em 1912 a
Aeronautica Macchi, que durante a guerra fabricava os lindíssimos (os italianos
e o design!) Macchi Folgore (relâmpago), um caça muito parecido com o
Focke-Wulf alemão, até porque começara por ser equipado com um motor Daimler
Benz.
Depois da guerra, a Aermacchi viria a fabricar uma série de
monocilíndricas desportivas de grande sucesso, como a famosa Ala Verde de
350cc. A marca foi adquirida nos anos sessenta pela Harley-Davidson, que
considerava necessitar de um fabricante de pequenas cilindradas. A parte
aeronáutica continuou, sendo integrada no Grupo Finmeccanica e finalmente
tornando-se na Alenia Aermacchi, que actualmente fabrica componentes como asas
para o programa Eurofighter. Ah, já agora, a MV Agusta faz motos e...helicópteros, numa empresa separada!
Do lado da Alemanha, sempre um potencia industrial, vêm ainda mais exemplos: A Heinkel fabricava o principal bombardeiro alemão, o He111, e os ainda maiores He 177, que foram dos primeiros aviões equipados com sofisticados sistemas de navegação, para todos os efeitos, antecessores dos modernos radares. A Heinkel também chegou a fabricar motores a jato. O nosso interesse, porém, reside nas excelentes scooter produzidas sob o nome Heinkel no pós guerra, tendo a marca chegado a produzir um micro-carro, embora voltasse ao fabrico de aviões em meados dos anos 50, quando as restrições foram levantadas. Nesse papel, construiu a versão alemã do (tristemente) famoso Lockheed F-104 Starfighter até ser absorvida pela
Messerschmitt-Bölkow-Blohm em 1980. A própria Messerschmitt aproveitou peças da carlinga dos caças ME109 para aparecer depois a guerra com o seu pequeno carro de três rodas, que não sendo bem uma motocicleta, partilhava a filosofia de um veículo descomplicado e económico nos anos difíceis do pós –guerra.
Quanto às Heinkel, que ainda hoje circulam em grande número nas mãos de coleccionadores, eram um scooter de excepção, dotadas de um motor de 400cc muito silencioso e fiável, e com qualidade de construção muito acima da média.
Outros aviões que usaram motores BMW foram os Junkers Ju88, que recebiam dois motores BMW 801 radiais de 1700 cavalos. Mas a marca foi ainda mais longe na tecnologia, equipando com o seu motor a turbina o único jato da segunda guerra de algum sucesso, o ME262. Ao mesmo tempo, a marca fabricava uma série de motos para o exército alemão, como o famoso modelo R75 de sidecar.
Se pensavam que do lado do Japão, não se passava o mesmo, atentem neste nome bem conhecido dos dias de hoje: Kawasaki. É bom saber que o nome completo da firma é Kawasaki Heavy Industries (Industrias pesadas Kawasaki), que fabrica tudo desde petroleiros a estaleiros navais, e máquinas tuneladoras como as que construíram o túnel do canal da Mancha. E, pois claro, motocicletas! Ora, durante a guerra, muito antes da sua primeira moto, a Kawasaki construía o Ki-100, designado pela Força Aérea Imperial Japonesa como o Go-shiki, ou “Type 5”.
Originalmente desenhado para aceitar um motor em linha, que o tornaria muito parecido com o já referido Macchi (descobriu-se depois da guerra que havia um intenso programa de troca de matérias primas por planos de guerra entre a Alemanha e o Japão, que resultou em vários “clones” japoneses de armas alemãs ou italianas, como por exemplo, uma versão japonesa da pistola Luger, ou este caça Kawasaki, que acabaria por ser adaptado para receber um motor radial- quando se ficou a assemelhar a outro calça alemão, o Focke-Wulf 190D.
Creio que dispensamos exemplos de veículos de duas rodas Kawasaki, bastando dizer que a primeira moto, a Meihatsu 125 de 2 tempos, foi feita em 1955. Nem esta, porém, escapou à influência alemã, pois, como parte das compensações de guerra, não era mais que uma versão da alemã DKW, tal como a BSA Bantam ou a Peugeot 125 da mesma altura.
Em suma, numa série de países industrializados, quer fosse a Piaggio em Itália, a Heinkel na Alemanha, ou a Kawasaki no Japão, a tecnologia aeronáutica adaptada à moto providenciou um caminho para o regresso à actividade de fábricas de aviões obsoletos, que por sua vez criou emprego e ajudou a reconstrução da economia desses países, colocando soluções de mobilidade baratas ao alcance das populações... e fornecendo alguns factos curiosos pelo caminho!andardemoto.pt @ 26-4-2018 00:12:44 - Paulo Araújo
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