Paulo Araújo
Motociclista, jornalista e comentador desportivo
OPINIÃO
Departamento de truques sujos
O feio gesto de Romano Fenati na última prova de Moto2 desencadeou uma reação que poucos, entre eles o piloto, poderiam ter previsto.
andardemoto.pt @ 19-9-2018 23:55:00 - Paulo Araújo
As redes sociais explodiram com insultos, chamadas para o piloto ser banido,
invectivas, e, logo que o castigo aplicado pela Dorna foi conhecido, críticas
por este ser ligeiro demais também.
Primeiro, vamos acertar numa coisa: a Dorna regula a actividade desportiva, e só tem ao seu alcance punições dentro dessa esfera. De acordo com isso, e considerando que Fenati já tinha sido desclassificado da prova em si, o castigo parece apropriado...até porque a Dorna não pode ter deixado de levar em consideração que, inevitavelmente, outras sanções, contratuais e financeiras viriam decerto, como acabou por ser o caso, juntar-se à desportiva sob a sua jurisdição.
Estas, como cedo transpareceu, terão uma influência muito mais vasta e duradoura na carreira de Fenati do que a mera exclusão de duas ou três corridas... Quando não mesmo a faculdade de lhe pôr um fim.
Segundo, não aprovo de modo algum o comportamento de Fenati. Entendo como é perigoso e irresponsável tal atitude num desporto que já sem essas coisas tem o seu quê de perigoso, mas por outro prisma, também acho que não é caso para reacções como as que se têm visto e lido.
No fundo, e considerando que: a) Manzi também se tinha portado mal e a acção de Fenati foi uma reacção, e que: b) não chegou a haver qualquer acidente, tudo o que se seguiu até parece algo excessivo. Houve logo quem viesse pelo caminho de lembrar que Fenati já havia sido corrido da VR46, mas aí foi por uma discussão com Uccio Salucci, o companheiro de Valentino Rossi que gere a equipa.
Porventura, o ponto mais importante a marcar aqui é que se tratou de um caso de linchamento pelos média e aqui fica um facto que os pode chocar, especialmente se foram daqueles que, segundos depois da manobra estavam a chamar de tudo a Fenati. Este tipo de coisa acontecia frequentemente há uns anos, só que não sob o escrutínio imediato de câmaras de alta definição a transmitir em directo para todo o planeta.
Sim, leu bem, leitor, coitado do piloto que chegasse a qualquer prova de nível internacional sem estar versado neste, chamemos-lhe assim, departamento de truques sujos.
Incluindo alguns portugueses nas nossas tímidas primeiras internacionalizações...perguntem a Miguel Franco de Sousa, que agora milita na Kawasaki Z CUP, mas há anos alinhou com uma Yamaha TZ em várias provas do Europeu de velocidade de 250, na altura a classe mais competitiva do mundo, e passo a explicar porquê...
No Mundial da mesma, quanto mais no de 500, sempre houve diferenças abismais entre as bem financiadas equipas de fábrica e os outros... Quando falamos dos 15 títulos de Giacomo Agostini, há que fazer um parênteses, sem desfazer no seu óbvio talento, para explicar que Agostini batalhava contra outras 3 MV e um exército de Norton Manx obsoletas, e mais outras criações artesanais guiadas por pilotos de meia-idade que eram também preparador, mecânico, condutor e cozinheiro... Já no Europeu, não havia motos de fábrica e portanto, não raro, apresentavam-se aos treinos 45 ou mais furiosos, sendo que só 36 iriam ser autorizados a alinhar...donde se percebe que a luta pelo 35º lugar era mais feroz que a pela pole...
Voltando ao Miguel de Sousa, houve uma prova, salvo erro em Paul Ricard, ou Mugello, em que os seus rivais simplesmente o atiraram para fora da pista sem mais cerimónias nos treinos... Queixar-se? A organização encolhia os ombros e dizia "that's racing!"
E a gama de truques era vasta: chocar de propósito em curva, mas pelo lado de dentro, já que o que está por fora fica sempre pior, dar tapas no capacete do outro a alta velocidade, ou então safanões ao guiador, ou puxar um cotovelo, ou nas chicanes lentas travar demasiado (para obrigar o piloto atrás de nós a colidir descompensado com roda da frente a sair de trajetória) ou quando somos nós atrás, embater como que por acaso no pneu traseiro (mais uma vez, o "batedor", atrás, controla o efeito da manobra, por ele provocada, mas o "batido”, à frente, pode ser apanhado de surpresa e atirado ao chão...)
Randy Mamola tinha a melhor de todas, por ser puramente psicológica e portanto impossível de penalizar...sabendo que era capaz de travar mais tarde que qualquer um dos seus contemporâneos, o seu truque era chegar as fim duma longa recta a 200 e muitos ao lado do seu rival a ultrapassar, virar a cabeça e pôr-se a olhar fixamente para o outro. Ou isto o desconcentrava totalmente, sendo a seguir fácil ultrapassá-lo, ou o outro ignorava-o e Mamola esperava para ver o movimento da mão na manete, sabendo que travando ele próprio duas décimas de segundo depois ainda passaria o adversário na travagem.
Que dizer ainda dos duelos Biaggi /Capirossi há uns anos no mesmo Mundial de 250? Ou da recente altercação Marquez/Rossi, quando o Espanhol atrapalhava o Italiano curva após curva sem que a (Espanhola) Dorna fizesse nada, mas depois, quando Vale ripostou, toda a imprensa do país vizinho viu a “patada” que nunca existiu?
O próprio truque usado por Fenati com tão pouca discrição foi “importado” do Motocross, onde era vulgar, muito mais difícil de detetar e podia até passar por ser feito “sem querer”. A beleza é que funciona dos dois lados, do lado da embraiagem a moto perde tração, do lado do travão, trava a dianteira e perde terreno!
Lembro-me que até havia estas trocas de galhardetes bem-humoradas, sem qualquer intenção lesiva nem consequências. Perguntem ao sobredotado Paulo Almeida, agora no Brasil, pela sua ida a Macau de RC30 no ano em que Schwantz lá foi com a Suzuki RGV… o Americano era tão mais rápido que dobrou praticamente toda a grelha e quando passou por Almeida apalpou-lhe… o final das costas, para pôr a coisa delicadamente!
Doutra vez, nas 24H de Le Mans, o português Vieira passou na RC30 da Honda France pela GSXR de Thierry Crine em plena recta e fez-lhe cócegas num cotovelo… quando lhe fui perguntar, ele explicou: “Quando eu andava nos nacionais franceses com uma Suzuki privada, a do Crine era tão mais rápida, que ele me fez aquilo ao passar… hoje, era a minha Honda a mais rápida e eu devolvi-lhe a gracinha!”
Voltando a Fenati, o próprio tomou a iniciativa de se desculpar profusamente ao visado, à equipa, ao desporto em geral e a todos os fans, dizendo que não foi coisa de homem mas se tinha exaltado, perdido a cabeça, e estava muito arrependido. O caso é que o pacote de talento que Fenati exibe raramente vem só e as excentricidades ou temperamento de vários pilotos excepcionais ao longo da história são sobejamente conhecidas …
John Kocinsky, além de xenófobo, era tarado e vestia-se na motorhome num complicado ritual sempre pela mesma ordem, sempre com a mesma cor de meias, pondo os pés numa toalha especial.
Barry Sheene era supersticioso ao ponto de correr para o resto da sua vida com uma T-shirt Gary Nixon, por estar a usar uma quando sobreviveu à terrível queda em Dayota a 280.
Michael Doohan atirava-se para a gravilha a pé quando tinha um fato novo, convencido que se não o fizesse, lhe calharia estrear o fato em prova.
Anthony West foi despedido de uma equipa oficial por chegar à boxe irritado com a moto e atirar um computador da equipa para o chão, sugerindo ao dono onde o podia enfiar...
O ponto que estou a tentar fazer é que os pilotos não são perfeitos, são um pacote complexo de qualidades e defeitos, e a fogosidade que levou, no caso, Fenati, a cometer tal disparate é o outro lado da moeda que é preciso exibir para andar à frente e ganhar corridas. Sem uma, não teríamos a outra, nem corridas combatidas ao centímetro até à última curva…
andardemoto.pt @ 19-9-2018 23:55:00 - Paulo Araújo
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