Adelina Graça
Duas rodas, duas asas
OPINIÃO
Quando chega ao fim do dia, o que sobra da amizade?
Passada que está a época de Natal e tudo o que de ternura ela comporta, voltamos à vida real. Na vida real tudo é um pouco menos ternurento!
andardemoto.pt @ 12-1-2023 19:04:41 - Adelina Graça
Andar de moto com amigos é uma experiência maravilhosa, dependendo das condicionantes e das dificuldades que isso comporta.
Quando decidimos sair de moto no fim de semana com os amigos, os sorrisos, a alegria, o espírito livre, são a pedra de toque, tudo parece simples e maravilhoso, o espírito aventureiro corre-nos nas veias e claro está, tudo parece fácil, o fim do mundo é já ali e a única palavra que nos surge à mesa do café é um claro e decidido “Vamos!”
Mas será que vamos?
Eu diria que dos 100% que respondem “Sim!” ao apelo, 10 % mantêm o interesse, e quando chega a hora de ir, 5% estão lá!
Mas talvez o número seja o menos importante, o importante é a companhia.
Vamos por partes.
Viajar de moto é tudo menos monótono. Se há emoções absolutamente maravilhosas que ficam para sempre guardadas na nossa alma e na nossa mente, também há momentos difíceis, muito difíceis, física e psicologicamente.
Há uma máxima que trago sempre comigo: "nas viagens de moto, o mais previsível é acontecer o imprevisível!” e como vamos todos lidar com isso?
Mas antes do imprevisível há o previsível: quanto maior e mais difícil for a viagem, maiores serão os desafios, sejam eles físicos ou emocionais, e haverá momentos em que a ternurenta amizade se tornará num mar revolto.
Sentir cada quilómetro de estrada tempestuosa, por caminhos de terra esquecida, entre buracos ou por vezes crateras, pedras, areia, lama, pó, gravilha e outros tantos desafios que nos transportam para a superação dos teus próprios limites.
Quilómetros infindáveis entre paisagens de cortar a respiração, mas (há sempre um mas!) acompanhadas de estradas que nos fazem doer os braços, as costas, as pernas, com os nervos levados ao limite, que nos atiram ao chão sem qualquer complacência, que nos fustigam as montadas quando o calor do motor já supera os 100 graus, quando as malas quase se arrancam dos suportes, quando os plásticos querem saltar, quando já não consegues olhar para os manómetros que vibram como se estivessem a ser eletrocutados, quando já te esqueceste de colocar o descanso e deixas cair a moto para o lado, ao som de um sonoro e profundo impropério arrancado das entranhas, seguido de um irritado “a sério?”, quando o GPS não te dá mais alternativas que não seja mais terra, mais buracos, mais gravilha, mais pedras…
E depois, vem o imprevisível. Os parafusos que desapertam, as peças que partem, os buracos intransponíveis, a falta de gasolina, o que ficou para trás e já não vês no espelho, o que nos diz “mais terra?”…
Onde ficam as emoções e como lidamos com os amigos (e eles connosco) quando a paciência já te escorre pelo capacete, quando queres simplesmente tirar o casaco porque o calor parece que te está a diluir o corpo, ou quando o discernimento é igual a uma Neandertal?
Bem, aí vem ao cimo tudo o que de nós há de primata, ninguém mais consegue encontrar a ternura, tudo se torna mais difícil, mais duro, mais frio, as palavras saem como pedra que se atira e as emoções são agora explosivas.
Depois, quando voltas ao alcatrão, essas emoções vão-se moldando lentamente, entre sensações de heroísmo e de superação, de desaceleração emocional, que aos poucos vai dando origem a algum remorso, misturado com cansaço. E os outrora rios de transpiração transformam-se em lágrimas de emoções contraditórias, de gritos e suspiros que só o nosso capacete consegue suportar.
E quando tomas o duche no final do dia, por entre a terra que te escorre pelo corpo e te lava a alma das emoções, que aos poucos vão transformando a tua forma de ser e de como te relacionas com os outros.
Quando chega ao fim do dia, o que sobra da amizade? O que nos liga? O que nos une? O que nos separa?
E o que nos faz voltar de novo a abraçarmo-nos e a seguir viagem… ou não…
andardemoto.pt @ 12-1-2023 19:04:41 - Adelina Graça
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