Pedro Alpiarça
Ensaiador
OPINIÃO
Velhos são os trapos
- “Mas porque é que me estás a tratar assim? Fiz-te algum mal?” - Vocifera um motociclista na beira da estrada.
andardemoto.pt @ 31-3-2024 17:30:00 - Pedro Alpiarça
Aparentemente só, perscruta a moto várias vezes, olha para dentro do motor com um escrutínio mais próximo de uma prece holística do que um olho clínico de um perito. Bufa e retoma o discurso:
- “Vinhas a andar tão bem! ‘Inda no mês passado te pus uma bateria nova e agora morres assim, sem mais nem menos? É que nem vinha a apertar contigo pá… “
Afasta-se um pouco. Com ar preocupado pega no telefone e conversa com duas pessoas: A primeira, o amigo mecânico que tantas vezes trabalhou na sua mais-que-tudo; a segunda chamada foi para a outra companheira de vida (esta de carne e osso), para avisar que muito provavelmente iria chegar tarde.
Das respostas resultantes, a mensagem não podia ser mais antagónica. Se o amigo lhe dava a esperança de que podia ser apenas falta de combustível (e a bomba estava a uma distância caminhável), a resposta da sua mulher revelava a desconfiança total na veracidade dos eventos que ele estava a viver. Mas a verdade doía mais. A sua velhinha amante de duas rodas estava doente. Depois de quase uma década aos seus comandos e quase 100k felizes quilómetros, esta era a primeira vez que o deixava ficar mal.
Abriu a tampa do depósito e abanou-a, ouviu algum líquido a movimentar-se e desconfiou do diagnóstico do perito. Colocou o capacete no cotovelo e preparou-se para percorrer as largas centenas de metros que o separavam do oásis petrolífero.
- “Espero bem que estejas apenas com sede. Ouviste-me falar da outra, não foi? Estás chateada e queres que te peça desculpa, é isso?”
Há uns dias, tinha experimentado a sua mais recente versão, e tinha ficado siderado. Tudo era novo e melhor e mais bonito e tão mais fácil. A electrónica tinha ajudas inumeráveis, estava mais leve, e tinham resolvido aquele problema crónico que tanto trabalho lhe tinha dado a contornar. E era tão mais bonita…
Ofegante, depois de a ter alimentado com a preciosa gasolina, carregou no botão da ignição uma e outra vez. Depois de umas quantas revoluções o motor ganhou vida, com uma voz gloriosamente saudável.
Já no regresso a casa, todo o conjunto mecânico à sua volta foi elevado a um patamar esotérico, cada curva, cada subida de rotação estava a ser agraciada com um diálogo único…aquele dos grandes amores. Pensou nas viagens feitas e imaginou umas quantas por fazer, e sentiu que a sua história ainda não tinha acabado. As suas marcas de guerra davam-lhe um ar de veterana, e enchiam de carácter as batalhas que estariam para vir.
- “Desculpa, miúda…Nunca te vou trocar por outra!” - disse enquanto lhe acariciava o depósito.andardemoto.pt @ 31-3-2024 17:30:00 - Pedro Alpiarça
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