Vitor Sousa

Vitor Sousa

Jornalista

OPINIÃO

A história repete-se?

Nos anos 60 e 70 do século passado, a indústria japonesa, reformada e potenciada, cultural e economicamente, no pós-II Guerra Mundial, invadiu o mercado mundial de motos e passou a dominá-lo em poucos anos. Será que estamos a assistir à repetição da História com os fabricantes chineses?

andardemoto.pt @ 21-12-2024 12:30:00 - Vitor Sousa

No ‘timeline’ da indústria motociclística há um ponto que muda todo o paradigma: o lançamento, em 1969, da Honda CB 750 ‘Four’. O culminar de um processo evolutivo que começara na década de 1940, após a tragédia de Hiroshima e Nagasaki, como necessidade local da criação de meio de transporte socialmente acessível num país devastado. A Honda, a partir de 1946, e a Yamaha desde 1955, lideraram um processo que viria a ter ainda na Suzuki e na Kawasaki (ambas, tal como a Yamaha, já existiam antes dedicando-se a outros ramos de actividade) importantes ‘players’. Começaram pelas motos de pequena cilindrada, mas ao ganharem ‘balanço’ técnico e financeiro, aventuraram-se nas motos ‘grandes’, utilizando uma estratégia simples: copiar, e depois melhorar, os produtos que se distinguiam na indústria das duas rodas, à época; principalmente as motos das marcas inglesas, cuja produção dominava o segmento das maiores cilindradas.

Cimentando a sua evolução no desenvolvimento tecnológico e numa filosofia de trabalho que enraizava numa cultura própria de união, sacrifício e dedicação, não demorou muito até que passassem a oferecer ao mercado – incluindo o mais exigente mercado europeu – motos com mais qualidade de construção, mais fiáveis, com melhores componentes, mais rápidas, seguras e confortáveis e, a partir de determinada altura, até muito mais apelativas esteticamente. Depois da CB 750, as marcas japonesas ‘perderam a vergonha’ e passaram a concorrer directamente com os grandes construtores europeus. O ‘velho continente’ voltou a fazer justiça à expressão e deixou-se arrastar. Primeiro, não percebendo o ‘tsunami’ que aí vinha, mantendo-se fiel a métodos de produção e princípios técnicos ultrapassados, e depois não conseguindo reagir, porque a política laboral europeia, fortemente influenciada pelos sindicatos, tornava, logo à partida, o confronto directo com a máquina produtiva japonesa demasiado desigual.


As marcas inglesas faliram, e só algumas outras europeias se mantiveram em actividade, quase residual, graças às intervenções estatais ou apoiadas noutros sectores de negócio (os automóveis, por exemplo, como era o caso da BMW).

Será que, na actualidade, estamos a assistir a algo semelhante, mas desta vez com os construtores chineses a assumirem a ameaça?

Sim… e não.

O panorama actual é completamente diferente. Os japoneses, apesar da capacidade de produção e da rede comercial que construíram, não conseguiram manter o domínio avassalador do mercado, o qual assistiu, neste século XXI, ao ressurgimento das marcas europeias. Apostando no design, na história e na tradição, inovando tecnologicamente, escolhendo os melhores materiais, com um marketing inteligente, construtores como a BMW, a Ducati, a Vespa, a Triumph ou a Moto Guzzi renasceram das cinzas e conquistaram um lugar importante e destacado no panorama geral. Mas esta aposta na qualidade e na tradição - no ‘nome de família’ - tem um custo, e em mercados fortemente concorrenciais e mais fracos economicamente, como os do sul da Europa, o factor ‘preço de venda ao público’ pode fazer a diferença entre o sucesso e o fracasso.


Os construtores chineses – como os indianos – produzem quantidades ‘pornográficas’ de veículos de duas rodas. Antes da pandemia, a China produzia mais de 20 milhões de motos por ano! Beneficiando de uma política de ‘capitalismo de estado’, a China comunista começou a aventurar-se nos segmentos de maior cilindrada para conquistar o mercado ocidental, tentando ganhar prestígio e ultrapassar a desconfiança com que historicamente é encarada.

Então, nos últimos anos, aconteceram dois fenómenos raros: por um lado, as marcas chinesas (algumas concentradas em enormes grupos industriais) começaram a desejar criar qualidade, para além da produção barata, por outro – e talvez mais importante – nesse processo, adquiriram ou estabeleceram parcerias com marcas europeias, absorvendo políticas de design, atenção ao detalhe na produção e produzindo de acordo com os padrões mais exigentes da indústria europeia, numa constante permuta de conhecimento e vantagens, também para os europeus que encontraram aí um sistema de produção mais barato do que o seu.


BMW (Loncin), Piaggio (Zongshen), KTM (CF Moto) são apenas exemplos de quem não hesitou em fazer esse caminho. E há, até, parcerias entre os maiores construtores japoneses e grupos chineses.

Para termos uma ideia de como o paradigma está de novo em mudança, atentemos ao exemplo português. Há cinco anos apenas (2019), no top-10 das marcas mais vendidas em Portugal no segmento acima dos 125cc, havia apenas uma marca com ligações à China: a Benelli (propriedade da Qianjiang), sendo esta, na verdade, e apesar disso, uma marca europeia. Em 2024, no Top-10 estão três (CF Moto, Benelli e Voge… e QJ em P11, a subir rapidamente).

Aos construtores chineses faltam ainda as referências estéticas e atenção ao detalhe que apelam ao cidadão europeu (copiar, por vezes mal, não chega) e vencer a barreira da desconfiança sobre a fiabilidade, algo que só o tempo resolverá. Quando isso acontecer – e parece que vai mesmo acontecer – a China será a nova dominadora do mercado mundial de motos.

andardemoto.pt @ 21-12-2024 12:30:00 - Vitor Sousa


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