Márcia Monteiro
Marketeer, “Mulher do Norte” e motociclista em estrada e fora dela (Off Road).
OPINIÃO
Descoberta e Aventura no Portugal de Lés a Lés Off Road 2018
Imagine como seria atravessar Portugal de uma ponta à outra e ter a oportunidade de conhecer as regiões mais recônditas e menos exploradas do nosso país. Imagine como seria estar em perfeita harmonia com a natureza e com os animais, descobrindo locais nunca antes explorados numa perspetiva completamente distinta, conhecendo aldeias e povoações, convivendo com os residentes locais, partilhando histórias e experiências. Agora imagine como seria fazer tudo isto e muito mais em cima de duas rodas. Consegue imaginar? Seja muito bem-vindo ao “Portugal de Lés-a-Lés Off Road 2018” – decorreu de 26 a 29 de setembro.
andardemoto.pt @ 4-10-2018 16:09:42 - Márcia Monteiro
Atualmente, é considerado o maior evento mototurístico da Europa fora de estrada.
O “Portugal de Lés-a-Lés Off Road” é um passeio mototurístico organizado pela Federação de Motociclismo de Portugal que, tal como o nome indica, percorre Portugal do extremo mais a norte até ao extremo mais a sul num trajeto de cerca de 1.000 km em apenas 3 dias. Isto significa que é possível conhecermos o nosso país de uma forma menos convencional (estrada) através de um prisma diferente (Off Road), ou seja, em perfeita comunhão com as mais belas paisagens nacionais onde provavelmente nunca chegaríamos se não fosse numa mota de todo o terreno. Atualmente, o “Portugal de Lés-a-Lés Off Road” é considerado o maior evento mototurístico da Europa fora de estrada. Este ano, contou com a participação de 350 pilotos nacionais e estrangeiros e foi levada a cabo, uma vez mais, a campanha “Reflorestar Portugal”, levando centenas de árvores autóctones a algumas das regiões fustigadas pelos incêndios florestais. Importa também referir que esta iniciativa não tem fins competitivos. No entanto, eu acredito que tem esse fim: um fim competitivo connosco próprios, sendo uma prova de superação pessoal.
A minha preparação para esta iniciativa começou 3 meses antes e enganem-se se pensam que se trata de um passeio meramente turístico. Percorrer cerca de 300 km por dia em offroad é muito exigente a nível físico. Em estrada podemos demorar cerca de 3 horas mas no todo-o-terreno podemos ir muito além das 10 horas de condução diária, dependendo do ritmo de cada um. Enfrentar terrenos íngremes, altas temperaturas, desgaste físico e cansaço não é de todo fácil. Apesar de estar integrada na equipa Moto Flash Racing Services, eu já sabia de antemão que iria fazer esta jornada sozinha devido ao facto dos meus colegas terem ritmos de andamento diferentes do meu. Por isso, tinha que garantir que conseguia fazer isto sozinha, por mim e para mim. Primeira verificação: Gasolina na mota – check, GPS carregado – check, água – check, barras energéticas – check, pensos rápidos – check e localizador no telemóvel – check. 3...2...1... a Aventura vai começar!Assim que o pó baixava, metia a primeira e continuava.
Na madrugada do dia 27 de setembro, e ainda antes do sol nascer, parti de Macedo de Cavaleiros em direção a Castelo Branco. O percurso iniciou de forma serena, ainda com poucos pilotos a rolar, mas nada fazia prever o dia que iríamos ter. Face às condições climáticas atípicas nesta altura do ano e ao clima seco e quente que temos sentido nos últimos meses, a maior parte do percurso foi realizado envolto numa nuvem de pó. Ainda assim, nada me fez desistir, mesmo quando o sol batia de frente, a visibilidade era completamente nula e nem os óculos espelhados reverteram a situação. Muitas vezes fui forçada a abrandar o ritmo e em situações pontuais tive mesmo que parar. Assim que o pó baixava, metia a primeira e continuava. Tive a oportunidade de atravessar a Serra de Bornes, fazer uma breve passagem pela Torre de Moncorvo e logo após a descida da travessia do Douro, cheguei à Barragem do Pocinho. Continuei o percurso com passagem por Foz Côa, Guarda e, finalmente, Castelo Branco. Assim que desliguei a mota e tirei o capacete verifiquei que os primeiros calos nas mãos estavam a aparecer. Devido ao excessivo pó desse dia, tinha o rosto completamente castanho e mesmo depois de tomar banho, continuava com o pó na pele, pois a toalha branca do banho estava igualmente castanha.
Lembro-me que me coloquei em pé em cima da mota e gritei: “sou livre”!...
Na madrugada do dia 28 estava muito entusiasmada porque sabia que o percurso iria passar por uma das minhas zonas favoritas para o todo-o-terreno: o Alentejo. E não me enganei. Iniciei a 2.ª etapa percorrendo longas pastagens e campos agrícolas de diversas cores que me faziam lembrar um “patchwork” em tecido. À medida que ia rolando e passando de região para região, sentia os diferentes cheiros e temperaturas. Depois de Vila Velha de Rodão, fiz a minha primeira paragem em Castelo de Vide. Segui viagem para o alto da Nossa Senhora da Penha (Parque Natural da Serra de S. Mamede) e vislumbrei uma das mais belas panorâmicas das planícies alentejanas. Breve passagem por Portalegre (considerada por muitos como a capital do TT) e logo em seguida pude finalmente “rasgar” as longas planícies alentejanas. Lembro-me que me coloquei em pé em cima da mota e gritei: “sou livre”!... é muito difícil descrever esta maravilhosa sensação. No entanto, nada fazia prever a longa extensão de alcatrão que se seguia. Foram longos quilómetros que se revelaram um verdadeiro tormento para o corpo, para a mota e para os pneus que se corromperam quilómetro após quilómetro no alcatrão aquecido pelas altas temperaturas. Terminado o pesadelo, segui para caminhos mais técnicos junto ao lago do Alqueva com bastante pedra solta, lombas e alguma lama. A 20 quilómetros do fim da etapa encontrei outros pilotos parados no fim de um estradão e, pensando que poderia ter acontecido alguma coisa, parei e perguntei se estava tudo bem. E ainda bem que estava, tinham parado para beber debaixo daquele calor abrasador e também me ofereceram, mas na minha cabeça já só conseguia ver o final da 2.ª etapa e, por isso, segui viagem até Reguengos de Monsaraz. Neste dia as dores musculares estavam cada vez mais fortes e eu já sentia dificuldades até a caminhar.
Assisti ao mais belo nascer do sol que alguma vez tinha visto
Acordei na madrugada de 29 de setembro extremamente cansada. Olhei pela janela do quarto e ainda estava de noite (todos os dias me levantava às 5:30h)... tinha bolhas nos braços (provocadas pela fricção do equipamento), calos nas mãos, lábios gretados (devido ao pó dos últimos dias) e muitas dores musculares. Fisicamente, não tinha vontade de continuar esta jornada solitária, mas psicologicamente eu sabia que tinha que continuar, por mim e para mim. Coloquei uns pensos rápidos nos braços, umas ligaduras nas mãos e mal o dia começou a clarear, arranquei com o Algarve na mira. E não poderia ter feito melhor... assisti ao mais belo nascer do sol que alguma vez tinha visto, os raios de luz espelhavam no Alqueva e a tranquilidade alentejana obrigava a desfrutar desta paisagem incrível. Já na Serra do Caldeirão fui presentada com percursos muito técnicos e era muito frequente fazer alguns desvios devido ao facto de rolar em zonas onde os animais pastavam livremente, cavalos, vacas, porcos e bois. A 50 km do fim tive o meu primeiro furo, mas em momento algum pensei desistir, porque eu sabia que depois de todos estes dias de descoberta e aventura, eu tinha que conseguir terminar. A temperatura continuou a subir e já em Castro Verde foi até aos 35 graus com um percurso muito mais exigente, pedra solta, subidas e descidas, algum pó, curvas e contracurvas. Com o aproximar da meta já conseguia sentir a brisa marítima e cada vez mais acreditava que ia chegar ao fim. Às 15:50h cortei a meta em Albufeira. Fisicamente sentia-me exausta, tinha dores no corpo todo e várias feridas nas mãos e nos braços, mas emocionalmente senti-me forte, muito forte. E é por todos estes momentos únicos e provas de superação pessoal que eu sinto que tudo vale a pena. O espírito vivido neste tipo de iniciativas é incrível... amizade, entreajuda, camaradagem e muita alegria. Sem dúvida que nos dá muita bagagem e muitas histórias para contar e se me pedissem para escolher uma palavra que classificasse esta iniciativa, eu não escolheria uma mas sim, duas: aventura e descoberta.
No que diz respeito à iniciativa em si, conto com a minha participação nas 4 edições e havendo este termo de comparação, existem alguns pontos que merecem reflexão:
Pontos a melhorar:
. senti que os tracks das edições anteriores conseguiram reproduzir com mais eficácia as diferentes regiões percorridas, onde foi notória a passagem do norte para o centro e do centro para o sul. Na edição de 2018, apesar dos tracks serem muito interessantes, não espelharam de forma tão clara essa diferença, havendo etapas (especialmente a 1.ª) que não retrataram a diversidade paisagística existente na zona norte;
. compreendo que numa iniciativa desta natureza (fora de estrada) nem sempre é possível concretizá-la a 100% por essa via. Também compreendo que existam pequenas ligações em estrada (que são sempre necessárias) mas nunca uma extensa ligação de 40 km de alcatrão, conforme aconteceu na 2ª etapa;
. num passeio com esta tipologia de motas e de terrenos, avarias, furos e quedas são muito frequentes. A organização dispõe de equipa médica, mas existe um défice no apoio às motas. Do mesmo modo que uma mota avariada não consegue avançar, uma mota com um furo também não, por isso deveria haver mais apoio aos pilotos neste sentido;
. acho que é imprescindível os pilotos estarem identificados com um colete (à semelhança do que aconteceu nas duas primeiras edições), especialmente nas ligações de estrada, por uma questão de segurança. Também ajuda a identificar os pilotos e a não sermos confundidos com “invasores de propriedades”, pois foi isto que alguns residentes locais me chamaram em determinadas zonas, precisamente por desconhecerem esta iniciativa;
. deveria existir uma maior sensibilização junto das populações locais. Embora acredite que este trabalho deva ser feito pelas respectivas câmaras e juntas de freguesia, a organização poderia reforçar ainda mais essa comunicação. Mais do que uma vez fui a cafés que não tinham comida para vender porque desconheciam que o pelotão iria passar na localidade. Fui abordada também pela polícia local (que também desconhecia o Portugal de Lés a Lés Off Road) e cheguei a ser insultada por uma senhora que me ameaçou bater porque “estou farta de ouvir motas”. É muito importante que a população e o comércio local estejam sensíveis e entendam esta iniciativa como uma oportunidade de crescimento da região e partilha de experiências;
. tendo em conta o valor da inscrição, os jantares (incluídos nesse valor) deixaram muito a desejar.Pontos altos:
. pela 1.ª vez, os pilotos tiveram acesso a um parque fechado onde foi possível deixarmos as motas durante toda a noite com vigilância permanente das 23h às 7h;
. por norma, a organização fornece os jantares depois de cada etapa mas na última (com final em Albufeira), começaram a servir à tarde. Do meu ponto de vista, e uma vez que é o último dia, fez muito sentido, especialmente para quem regressa a casa nesse dia;
. o sentimento de ajuda e camaradagem é notório em todas as edições e devemos ensinar e manter este espírito em edições futuras. Sou fã do espírito TT e o Lés a Lés Off Road contribuiu e muito para isso;
. todos os elementos da equipa da organização foram sempre muito prestáveis e tentaram resolver todas as situações imprevistas com o máximo de empenho possível;
. os “Oásis” fornecidos pela KTM e pela Honda foram bons e mesmo quando por algum motivo eu não gostava da comida, eles sempre arranjaram alternativa.Nota: fotografias de autoria própria e também da FMP e do fotógrafo Paulo Ministro.
andardemoto.pt @ 4-10-2018 16:09:42 - Márcia Monteiro
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