Paulo Araújo
Motociclista, jornalista e comentador desportivo
OPINIÃO
Histórias do Mundial - Santiago Herrero: Campeão sem coroa
Hoje praticamente esquecido, o piloto natural de Madrid esteve a um pequeno passo de escrever uma página gloriosa na história do motociclismo espanhol
andardemoto.pt @ 29-3-2018 08:50:00 - Paulo Araújo
No início da época de 1970 do
Mundial de GP, um dos pilotos tido como favorito ao título de 250cc era um espanhol
que no ano anterior havia terminado em terceiro lugar do campeonato, depois de uma estreia
auspiciosa em 1968, quando já se tinha colocado em sétimo.
Este favoritismo devia-se,
não a grandes orçamentos ou apoios oficiais visto que competia numa
escassamente financiada moto espanhola, por si só revolucionária: a Ossa
monocoque, mas ao facto de que, das três primeiras corridas do ano, tinha
ficado em segundo lugar numa prova, em Le Mans, e ganho outra, em Opatija na Jugoslávia, em
apenas duas semanas de Maio.
Como os outros vencedores, Kel Carruthers na Alemanha e Rodney Gould em França, ambos em Yamaha, não tinham ficado bem classificados nas corridas que não tinham vencido, Herrero chegou à Ilha de Man para o Tourist Trophy, que na altura contava para o Mundial como a ronda de Inglaterra, no cimo da tabela e como tal favorito.
Na verdade, Herrero podia ter
“saltado” a prova da Ilha de Man, (que por ser considerado um circuito de alto
risco, já era evitado por outros pilotos europeus) já que, à altura, contavam
para a pontuação metade das provas mais uma, ou seja, no caso das 12 corridas de
1970 havia 5 resultados para “deitar fora”.
Porém, dito pelo próprio Santi
Herrero, em 1969 quando subira ao pódio na Ilha, ao lado de Frank Perris e Kel
Carruthers, “o TT é o teste por
excelência. Para mim, é como fazer um campeonato inteiro... é a confirmação
para os verdadeiros ases!” Santi sabia que, entre a elite dos
pilotos mundiais, um triunfo no Tourist Trophy tinha um reconhecimento
especial.
Ganhar um TT era mais, muito mais do que ganhar um Grande Prémio. Era também entrar num círculo exclusivo e respeitado de pilotos de élite. E Santi queria mostrar a todos que também era capaz de bater os melhores na Ilha. Porém, o destino tinha outros planos.
Piloto oficial
O relacionamento de Santi com os criadores da Ossa começara algum tempo antes, no bar Casa Tejada - o local de encontro das motos em Barcelona – onde conhecera Luis Yglesias, Eduardo Werring e Eduardo Giró, todos funcionários da marca.
Destes, Giró era, não só filho do
fundador da fábrica, mas também o engenheiro que construíra a espectacular "monocoque" de competição, precursora dos quadros de alumínio, numa época em que tubos de
aço eram a norma, isto muito antes dos quadros de dupla viga do também lendário J. J. Cobas,
que mais tarde dariam origem ao projecto Genesis da Yamaha.
Estes homens, talvez empolgados pelo entusiasmo do jovem de 24 anos, deram-lhe a oportunidade de testar a Ossa monocoque na zona de Prat, perto do aeroporto de Barcelona. Herrero ficou radiante com a moto e com o prospecto de a pilotar no Mundial do ano seguinte.
Assim, na primavera de 1968, entusiasmado com a ideia de pilotar no Tourist Trophy, viajou mesmo para a Ilha de Man um mês antes da corrida, onde o importador local da Ossa lhe disponibilizou uma moto do modelo 230, de estrada, para que ele pudesse aprender o circuito, longo e muito difícil.
Depois de alguns dias a queimar gasolina pelas estradas da Ilha que compõem os mais de 60 Km e mais de 200 curvas do traçado, e quando já começava a memorizar algumas secções, é que soube que estava a andar na direção oposta!
Porém, regressou tão encantado com
a sua estadia em Man, que costumava usar uma camiseta com um grande desenho do
perfil do circuito, com os nomes míticos de alguns pontos do circuito, como as curvas de Bray Hill, Quarter
Bridge e Ballacraine, o famoso salto de Ballaugh Bridge, os ganchos de Ramsey Hairpin,
Bungalow, Creg-Ny-Baa... E quando o questionavam sobre a camisa, apontava para o
peito e afirmava com confiança: “vou
ganhar aqui!”
O começo
O gosto de Santi pelas motos vinha já de criança, e começou por acaso. Nascido no seio de uma família modesta de Madrid, a 2 de Maio de 1942, ele foi forçado a dividir a escola com trabalho, para ajudar a família. Quando tinha doze anos, começou a trabalhar como serralheiro numa oficina em Puente de Vallecas, que no entanto fechou as portas dois anos depois. Já então gostava de motos e de conviver com mecânicos, e quem o conhecia nessa altura, descrevia-o como tímido mas trabalhador.
Com a oficina fechada, procurou um novo emprego e teve a sorte de chegar ao atelier de Gabriel Corsín, piloto oficial da MV Agusta/Avello, na época uma autêntica instituição do motociclismo em Madrid.
Tinha encontrado o lugar certo para dar rumo ao seu futuro: Corsín seria seu protector e promotor. Começou a levá-lo como mecânico às suas corridas, ensinou-o nos aspectos comerciais, educou-o e tratou-o como a um sobrinho- como recorda Luís Torres Corsín, um ano mais velho do que Santi e que foi, durante vários anos, seu parceiro na oficina do famoso piloto seu tio. “O meu tio aconselhou-o a estudar, dizendo-lhe que lhe seria útil para o futuro, mesmo que ele conseguisse ter sucesso nas motos.” De qualquer forma, ele sempre o ajudou com grande entusiasmo a preparar as motos com que correu enquanto lá trabalhava.
Voluntarioso, aplicado, sensato e com espírito de sacrificio, Herrero começou a dividir o seu tempo entre o trabalho, passatempos e estudos. Acabou o secundário, e depois estudou como desenhador numa escola nocturna. Era muito claro para ele que toda a sua vida iria girar à volta do mundo das motos.
Porém, o seu sonho era o de ser piloto, e insistiu com Corsín que o deixasse experimentar uma das suas motos. Logo que este acedeu e ele pilotou uma MV Agusta oficial, todos perceberam que aquele jovem tinha talento.
“Tinha qualidades de piloto - explica Luís Torres Corsín - era rápido e corajoso, e entrava em curva mais decididamente que qualquer outro piloto.”
Naquela época era habitual ir a Galapagar e Cruz Verde, circuitos urbanos onde pilotos como Angel Nieto e outros, também tinham começado a correr. Nessas corridas, logo se viu que poucos podiam acompanhar Herrero, fosse em velocidade ou talento. Seja como for, Santi acabaria por ser convidado, como vimos, para pilotar a Ossa.
Em 1968, o seu ano de estreia no Mundial, o título foi ganho pelo grande Phil Read, numa Yamaha. Com um sexto lugar conquistado na Alemanha e outro em Assen, mais um quinto na Bélgica, e acabando a época com um pódio ao lado de Read e Bill Ivy no GP das Nações em Monza (disputado a 15 de Setembro), nesse ano Herrero afirmou-se como um piloto a levar em conta, especialmente nos circuitos mais rápidos.
Assim, encetou 1969 já como integrante do “Continental Circus”, e a época correria ainda melhor: Com vitória logo na primeira prova, em Jarama a 4 de Maio, seguida de outra em França, duas semanas mais tarde, e ainda com o famoso pódio no TT, ao lado de Carruthers e Ferris, Herrero pontuaria em 8 provas, facto pouco habitual numa época em que a fiabilidade das motos e dos pneus deixava ainda muito a desejar.
Notavelmente, venceu também em Spa, na Bélgica (outro circuito de pura velocidade, aliás o mais rápido do Mundial), e colocou a Ossa, e a si próprio, no terceiro lugar do Mundial desse ano com uns expressivos 88 pontos.
1970 estaria, portanto, destinado a ser o ano da apoteose: A Ossa estava desenvolvida ao máximo, Santi conhecia as pistas e os outros conheciam-no a ele! Como vimos, o começo de época foi auspicioso, com um segundo em França e uma incrível vitória na Jugoslávia.
Dizemos incrível porque, a demonstrar a sua vontade de ferro de vencer, Herrero terminou a corrida com o punho esquerdo da moto partido, pendurado do lado da carenagem. Isto porque, devido a uma lesão no pulso direito, o seu mecânico tinha-lhe montado ambas as manetes do lado esquerdo, e o esforço da travagem fora demasiado para a resistência do avanço!
Menos potente que as Yamaha de fábrica mas 20 Kg mais leve, a Ossa
casava na perfeição com o estilo arrojado de Santi, que entrava em curva a alta
velocidade, passando os seus concorrentes na travagem, beneficiando da superior leveza
do quadro monocoque.
Armado com o conhecimento do Circuito de Man, adquirido no ano anterior, onde já tinha sido terceiro, como vimos, Santi encetou a prova com entusisasmo. Porém, à quarta volta, na descida da 13ª Milha, tal como a sua última foto mostra,devido ao pneu da frente ter perdido ar, Santi despista-se e bate violentamente.
De tal forma que a Ossa se desintegrou (dizem que a que existe hoje no Museu é uma réplica). Santi viria a falecer dois dias depois, a 10 de Junho, no Hospital de Douglas, e seria Gould o Campeão esse ano.
Ainda hoje, uma placa relembra o seu nome, entre os grandes do Tourist Trophy.
O autor e o andardemoto.pt, agradecem a Paco de Man (na foto ao lado do criador da Ossa, Eduardo Giró) a cedência de imagens, algumas inéditas, de Santiago Herrero, bem como muita informação usada neste artigo sobre a história deste piloto.
andardemoto.pt @ 29-3-2018 08:50:00 - Paulo Araújo
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