
Paulo Araújo
Motociclista, jornalista e comentador desportivo
OPINIÃO
Das duas para as quatro rodas
Não é assim tão raro pilotos das duas rodas passarem para as quatro… conhecerem sucesso em ambas é que já é menos vulgar!
andardemoto.pt @ 3-10-2018 23:50:00 - Paulo Araújo
O Estoril Classic, que se realiza este fim-de-semana no Circuito do Estoril, evento que agora, e pela primeira vez, combina automóveis e motos, deu-me a ideia de falar um pouco dos pilotos que através da história fizeram com sucesso a transição, normalmente das duas para as quatro rodas… casos há bem conhecidos, como Damon Hill, Stephane Peterhansel ou, na nossa cena, as meninas do Todo Terreno, quer a Joana Lemos, quer a Elizabete Jacinto…
Indo um pouco mais longe, às origens, há um nome incontornável, até porque muitos ainda discutem se não se trataria do mais puro talento de todos os tempos…falamos de Tazio Nuvolari, agora quase desconhecido, mas que era o “maior piloto do passado, do presente e do futuro”. Ah, e não somos nós que o dizemos, foi Ferdinand Porsche!.... pouco depois da Grande Guerra. Fruto de um conhecimento familiar, Nuvolari começou a correr para a Bianchi, ganhando tudo o que havia para ganhar em Itália… em 1920, com 27 anos, venceu o Europeu de 350…
A sua determinação era proverbial, como por exemplo quando fraturou ambas as pernas nos treinos, e apareceu no dia seguinte para a corrida, engessado, exigindo aos mecânicos que o amparassem na grelha para poder arrancar… o pior foi no fim, quando chegou destacado para vencer, apanhando de surpresa a equipa, que tive de ir a correr para o apanhar para que pudesse parar a moto!…
Ainda em 1930, mudou para as 4 rodas, começou a pilotar para Enzo Ferrari e a coisa não foi diferente... numa altura em que a Fórmula 1 era apenas vagamente regulada, competia num Alfa-Romeo 1500 contra os poderosos Mercedes e Auto-Union da época, com motores de 6 litros… A sua vitória para a Alfa Romeu, no GP da Alemanha de 1935, com Hitler já a usar as corridas como propaganda, foi a única vez entre 1935 e 1939, que um carro não alemão ganhou uma corrida do Europeu!
O talento de Nuvolari era tal que, no desespero de tentar ficar à sua frente com os muito mais potentes carros alemães, os seus pilotos cometiam erros, rebentavam pneus, despistavam-se e…Nuvolari ganhava! Dizem que era dotado de uma tal sensibilidade ao volante que simplesmente punha o veículo prego a fundo e fazia o resto com a direcção, sem nunca travar…
Numa ocasião, ficou famoso por ganhar as Mille Miglie vindo de trás, com as luzes apagadas, só as acendendo na reta final ao passar pelo seu (estupefacto e convencido que ia ganhar) rival. Noutra altura o volante soltou-se, mas ainda assim venceu, operando com as mãos directamente na barra de direção…
Na Ilha de Man, deram-lhe um MG para guiar, venceu, claro, e quando lhe perguntam que tal eram os travões do modelo, respondeu: “não sei, acho que nunca os usei!” Na sua carreira, venceu 150 corridas, incluindo 24 Grandes Prémios, cinco Copas Ciano, 2 Mille Miglia, dois Targa Florio, dois RAC, uma vez as 24H de Le Mans e um Campeonato Europeu de Velocidade.
Seria de esperar que um piloto assim destemido viesse a perecer num qualquer acidente…mas de facto, Nuvolari, o Mantuês Voador que dá o nome a um pequeno circuito nos arredores de Milão, morreu acamado, com uma embolia desenvolvida após um enfisema, provavelmente agravado pelas largas décadas a respirar fumos nocivos nas corridas…
Quase todos conhecem o homem seguinte, que tem a distinção de ser o único campeão mundial de 500 cc motos e Fórmula 1 Automóvel. Começando com as Norton, em 1955, John Surtees, filho dum concessionário do sul de Londres, começou a correr em grass track e depois foi piloto oficial MV Agusta, tendo sido o maior rival do quase invencível Geoff Duke e da sua Gilera. Isto antes de encetar uma carreira de sucesso na F1 com os Lotus e os Cooper, chegando mesmo a ter a sua própria marca…
Surtees estava tão apegado às motos que, quando originalmente testou para a Aston Martin e viram do que ele era capaz de fazer nas 4 rodas, e lhe fizeram uma oferta para integrar a equipa, ele ainda argumentou “não, não, eu sou piloto de motos...” Inúmeras condecorações atestam da sua contribuição para o desporto motorizado em 2 e 4 rodas…
Algo semelhante, em versatilidade e talento, o inglês Mike Hailwood ficou mais conhecido por, após dominar a Ilha de Man com as Honda 250 e 350 de 6 cilindros nos anos 60, regressar 11 anos depois, “já velho” com 38 anos, para de novo bater tudo e todos numa Ducati 900 semi-privada… muitos não sabem que antes disso, nos anos intervenientes, teve uma carreira com algum sucesso na Fórmula 1, conquistando vários pódios em 50 GPs entre 1963 e 1974…
O bem-disposto campeão Mundial de 350, Johnny Cecotto, que corria no Mundial para a Yamaha e chegou a ganhar 3 corridas nas 500, fez uma transição de sucesso para os automóveis após ter lesionado um joelho na Áustria em 1979… O Venezuelano saltou para o habitáculo de um Minardi de F2 e acabou a época de estreia em 1981 em 14º lugar… Já no ano seguinte foi vice-campeão, com um March, e passou mesmo para a F1 com a Theodore Racing em 1983, chegando a acabar em 6º no GP dos EUA em Long Beach… a partir daí dedicou-se aos Turismos, competindo entre outros com BMW e Volvo da Tom Walkinshaw Racing…
Tal como Lawson, de que ainda na semana passada falámos, que passou de 4 títulos mundiais de 500 para uma carreira nas 4 rodas em monolugares…o próprio Wayne Gardner, primeiro campeão mundial de 500 australiano, teve umas boas épocas ao volante dos brutais Holden, uma espécie de Série NASCAR australiana, onde era patrocinado pela Coca Cola…
Voltando a Damon Hill, de quem falámos no início, competiu em motos sem grande alarde na série “Champion of Brands”, que ganhou em 1984 numa Yamaha TZ e depois, apesar de ser considerado um talento “acima da média”, teve alguma dificuldade em romper nas quatro rodas até se tornar ensaiador da Williams em 1991, acabando por conseguir 22 vitórias e um título mundial ao mais alto nível do automobilismo… como curiosidade, foi um de apenas 2 pilotos na história da Formula 1 a conseguir correr com o número Zero!
Finalmente, seria injusto acabar sem falar de Portugal e de uma das carreiras mais completas da nossa cena, a de Hermano Sobral, que de começos nas motos, nos anos 70 (onde até há uns anos tinha sido o único português a alinhar na Ilha de Man) passou para vários Troféus nas 4 rodas, como o Starlet, MG Metro e Clio, e acabou por regressar às 2 rodas na nossa cena de clássicas… ah e é um dos pilotos convidados para o Estoril, este fim-de-semana, numa grande Yamaha TZ750!
andardemoto.pt @ 3-10-2018 23:50:00 - Paulo Araújo
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