
Paulo Araújo
Motociclista, jornalista e comentador desportivo
OPINIÃO
Mundiais Velocidade - A evolução
Muito mudou no(s) Mundiais de Velocidade nos últimos anos. As mudanças, profundas, têm mais a ver com a estrutura do desporto em si do que com os avanços tecnológicos propriamente ditos....
andardemoto.pt @ 7-2-2018 20:51:53 - Paulo Araújo
O que chocaria um “fan” do “Continental Circus” dos anos sessenta ao percorrer um moderno “paddock” dos nossos dias? Para lá da espantosa evolução técnica das motos em si, talvez mais ainda seria, sem dúvida, a evolução dos meios aos dispor das equipas.
Lembro-me de ver algures uma foto a preto e branco de Phil Read, na altura já várias vezes Campeão Mundial, sentado sorridente na traseira dum furgão Transit e acompanhado doutros pilotos notáveis da época, a comer feijão directamente de uma lata...
Dessa foto às motorhome milionárias de hoje, das equipas com piloto e mecânico, quando não mesmo piloto e a namorada do piloto, a equipas com engenheiro–chefe, 4 mecânicos, (um só para tratar das suspensões), telemetrista, sinaleiro, cozinheiro, massagista e fisioterapeuta, passaram apenas 20 anos... e no entanto, a mudança foi radical.
O primeiro passo na escala, claro, foi a entrada a sério das fábricas. Inicialmente, era um choque para uma marca como a Norton ou AJS que um mecânico que trabalhava na própria fábrica durante a semana, preparasse depois, nas traseiras de casa e aos fins de semana, uma moto capaz de bater as oficiais. Ele simplesmente sabia mais do que fazia uma moto eficiente em corrida, frequentemente por o próprio ter competido uns anos antes, do que os “montadores de peças” que passavam por mecânicos de competição e iam acompanhar a equipa aos fins-de-semana, mais por obrigação do que paixão.
Aqui, a solução era óbvia, e os italianos e espanhóis foram talvez os primeiros a implementá-la: Pôr o tal mecânico de quintal encarregado da equipa de competição. Lino Farné, Tonti, Mori, Pierluigi Martini, Cobas, Arbizu, Bartol, Brouwer, Jan Thiel e muitos outros, estavam nessa categoria
Mas em muitas marcas, notavelmente a Triumph, sob a direcção de Edward Turner, a resistência a investir na competição era notável, a ponto de a marca, pertencente à BSA, só se ter envolvido na competição geradora de vendas nos EUA, em que a BSA reinava suprema, quando era já tarde demais para ser salva. É que a competição não só divulga o nome e capacidades das motos, como ensina a torna-las fiáveis e robustas... duas coisas de que as inglesas dos anos sessenta precisavam desesperadamente, como a comparação direta com as japonesas viria a demonstrar, pouco depois.
Portanto, primeiro passo: envolvimento direto da fábrica. Uma lição que os japoneses, nas suas primeiras aventuras na Ilha de Man, logo aprenderam: um verdadeiro exército de mecânicos, de olhos espantados, rodeavam as motos, aparentemente sem saberem bem o que estavam a fazer, e resultando frequentemente na contratação de um europeu mais experiente para orientar aquela gente toda...
Numa segunda fase, os mecânicos vinham da fábrica já conhecedores e
só lhes faltava ganharem a dura experiência de viver de pensão em pensão, em países estranhos, sem falarem a língua e a terem de se alimentar de comidas desconhecidas...
O meu amigo, agora aposentado, Toshi Araki, é um bom exemplo...
Conheci-o quando era o homem das Yamaha, cuja missão era acompanhar as
corridas, notando tudo o que os pilotos que usavam a marca faziam às motos: como as afinavam, que problemas tinham... antes dele, tinha essa missão um Finlandês que também conheci bem, Heikki Pentilla, que foi no entanto aliciado pelo HRC para mudar de campo...
Caído de pára-quedas no paddock nos anos oitenta, assumi que Toshi era o típico “salaryman”,
empregado da fábrica, até ouvir a mãe do falecido Fabrizio Pirovano chamá-lo para o almoço na única língua que a Signora Maria falava, o Italiano: “Toshi, viene a mangiare!” – ao que o japonês
respondeu, em Italiano igualmente fluente, que ia já!
Investigando,
fiquei a saber que um jovem Toshi, anos antes, pouco mais que adolescente, tinha sido mandado para a Europa para acompanhar a estrela
da Suzuki, Marco Lucchinelli, a caminho do seu título mundial de 82...
título que a equipa bisaria no ano seguinte com Franco Uncini, que agora faz tropelias com os BMW da Dorna na volta de abertura dos GPs....
Temos portanto dois lados do triângulo: O piloto e o interesse da
fábrica. Um assegurava a vontade de vencer, o outro o meio mais avançado
possível. Faltava o lado, possivelmente o mais importante de todos: o financiamento. Não é preciso recuar muito no tempo para ver motos totalmente despidas de patrocínios, ou só com o nome da marca, muitas vezes, como no caso do Conde Agusta, a paixão custando a equipa e a
camisola... ou pouco depois, cerca de início dos anos setenta, os primeiros passos tentativos, com Agostini a exibir a pioneira Marlboro nas suas carenagens, ou Phil Read (ele, mais uma vez!) a ostentar Team
Phil Read Castrol” nas suas Yamaha, ou mesmo na avioneta em que, não raro,
chegava às corridas...
Um estilo de vida milionário, completo com
exílio fiscal nas Ilhas de Jersey, que em breve seria replicado nos Rolls Royce de Barry Sheene – completos com matrícula personalizada BS7.
Chegaram portanto os patrocinadores, primeiro os que tinham mais
directamente a ver com o meio: os óleos, as velas, os pneus – mas depois tudo e mais alguma coisa. Barry Sheene foi patrocinado pela Brut – um perfume – pelo Mr Sheen, um spray de limpeza, este por razões óbvias, mas também por uma financeira, pelas aparelhagens Akai ou até, a dada altura, por uma marca de “skates”!
Com a chegada em grande de patrocinadores, a quem frequentemente, e cada vez mais a cada ano, eram pedidos orçamentos mirabolantes, tudo teve de se profissionalizar. O furgão em segunda mão deu lugar a um camião TIR, (muitas vezes ele próprio parte do patrocínio, como com Nieto e os Pegaso) o mecânico de calção de ganga rasgado passou a andar (ele e os seus 6 colegas!) com um uniforme ostentando os logos dos patrocinadores e, caso os patrocinadores viessem visitar e trouxessem convidados, foi necessário montar uma tenda para os entreter e afastar da área de trabalho.
Isto aconteceu nos GP do Mundial por volta de 1972, mas até 1994, no
Mundial de Superbike, por exemplo, ninguém tinha uma “hospitality”, nem a
poderosa Ducati, e os convidados amontoavam-se na garagem entre os
mecânicos, a absorver o ambiente... então, uma equipa Austríaca, apoiada
pela Power Horse, uma bebida energética concorrente da Red Bull, decidiu mudar dos GPs para as Superbike com o seu piloto-estrela, um tal Troy Corser... como já tinham uma enorme “hospitality”, normal na MotoGP, passaram a montá-la no “paddock” das SBK... claro que, no ano
seguinte, todas as equipas tiveram de seguir a moda.
Pelo lado menos positivo, o que trouxe imagem profissional, uniformes limpinhos e hospedeiras charmosas de guarda-sol, tambem colocou de fora das corridas as empresas pequenas demais para suportar tal investimento... ou com imaginação a menos para ajuizar dos seus benefícios. Seja como for, a face da competição mudou para sempre!
andardemoto.pt @ 7-2-2018 20:51:53 - Paulo Araújo
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