Paulo Araújo
Motociclista, jornalista e comentador desportivo
OPINIÃO
O jogo do empresta
Ou de como fazer conhecimentos e amigos pelas pistas do
mundo fora, com um bocadinho de iniciativa e conhecimento de línguas.
andardemoto.pt @ 12-4-2018 06:44:19 - Paulo Araújo
Raramente, ou mesmo nunca, tinha falado disto antes, mas houve um factor fundamental que ajudou a cimentar a relação que ainda hoje detenho com muitos pilotos, manager, equipas, e mecânicos e como jornalista, me facilitou, em última análise, acesso a informação ou contacto aonde a outros este era negado. Confesso que começou por ser outra coisa completamente diferente, uma espécie de desejo de envolvimento total, que fazia com que dificilmente conseguisse estar no meio das corridas como mero espectador, a fotografar ou reportar, pelo que comecei primeiro, como seria natural, por ajudar os portugueses que se internacionalizavam.
Nessa altura, o fosso entre equipas internacionais e as nossas era grande: ferramenta, métodos de trabalho, atitude, tudo era diferente. Ao correr em Inglaterra e depois encontrar (nalguns casos) os mesmos pilotos em Vila Real para a prova do Mundial de TT, tinha oportunidade de ajudar os ingleses, normalmente muito atados e totalmente incapazes de falar uma língua estrangeira (a excepção era, e é, o jornalista/piloto Alan Cathcart, mas adiante!). Quando eles estavam enrascados com a mais simples coisa, era eu que ia pedir a uma equipa portuguesa a peça necessária, ou lhes indicava um torneiro (depois de me informar eu próprio!) que os desenrascasse. O corolário desta actividade era, inevitavelmente, que quando eram os portugueses a precisar, em Donington, ou Brands Hatch, ou Spa, ou outro sítio qualquer, as portas estavam abertas. Era o jogo do empresta...
A primeira amizade assim travada foi com a equipa Honda Inglaterra. Já conhecia Barry Symmons, o manager da equipa, por em 1984 ter mediado entre ele e os organizadores de Vila Real para melhorar a tradução do regulamento da prova portuguesa de TT1. A equipa Honda era todo um luxo, com o grande Ron Williams, (que chegou a ter a sua própria marca de motos de corrida, a Maxton) a funcionar como o mago das suspensões, e um lote de mecânicos do melhor. O mecânico chefe que vinha a Vila Real era Chris Mayhew, que acompanhou ao longo da carreira Ron Haslam, Roger Marshall, Joey Dunlop ou Roger Burnett e actualmente, prepara em Louth, no Norte de Inglaterra, motores Honda, como os com que a Parkalgar corria no Mundial de Supersport.
Para lhes explicar como funciona o jogo do empresta, numa corrida em Brands Hatch depois de conhecer bem o Chris, um amigo com uma das primeiras Yamaha FZ750 caiu, e entortou de tal modo o escape, que este batia no braço oscilante e o impedia... de oscilar! Claramente, era preciso uma barra estilo andaime para fazer de alavanca e endireitar a panela de novo, coisa que ninguém tinha . A minha sugestão de que talvez a Honda tivesse foi saudada com comentários sarcásticos de “ A Honda não te empresta nada!” Imaginem as caras quando eu regressei 2 minutos depois com uma das barras de montar os avançados, com cerca de 1,5 metros e a reparação foi feita em segundos...
Steve Parrish, na altura ainda piloto, era outro regular do GP de Macau que já conhecia vagamente, e nos desenrascou na primeira viagem a Macau, já aqui relatada: O Carlos Figueiredo, agora da Gira Motos, que tinha ido como mecânico do Pedro Baptista, deixou cair uma porca para dentro do motor aberto da Suzuki GSXR... acontece, mas a solução, não podendo virar a moto ao contrário e sacudi-la, era desmontar o motor todo! Entra o Paulo Araújo em acção e traz, da caixa de ferramentas do Steve, uma daquelas canetas-antena extensível que têm um íman na ponta... problema resolvido em segundos!
Outro que vinha amiúde a Vila Real, com Joey Dunlop e Steve Hislop, era o famoso Tony “Slick”, mais tarde mecânico pessoal de Fogarty na Ducati e em grande medida responsável pelos 4 títulos do feroz inglês, dada a especificidade das suas exigências. Conhecia-o desde os 17 anos, quando trabalhou para Jim Wells, mas quando foi para a Honda de fábrica, começámos por trocar paletes de Pepsi por velas de ignição HRC caríssimas, mas não ficou por aí... para mais, as memorias do “Slick” são impagáveis, como esta:
“Uma vez, em Donington
o Carl (Fogarty) chegou à boxe e disse: Epá não sei o que fizeste à moto, a
frente está perfeita, nunca me deu tanta confiança...” Mais tarde nesse fim de
semana, ganhou as duas mangas, e só muito depois descobri que me tinha
esquecido de apertar o tê do garfo. A suspensão mexia toda e flectia muito
mais, e a falta de rigidez dava-lhe confiança porque o pneu escorregava de
forma mais previsível... Nunca lhe disse nada, mas passou a andar com os
parafusos dos tês só apontados ao mínimo, para não saltarem a meio da corrida!”
Com o “Slick” também aprendi muitos truques, como passar a verificação com um escape barulhento demais, largando dentro da panela uma chave de caixa para aí de 42mm. Passada a verificação, à minha pergunta ingénua de como é que ele ia agora tirar de lá a chave sem desmontar o escape todo, Tony sorriu, deu uma grande aceleradela... e o roquete foi prontamente cuspido para a sua mão esquerda que aguardava!
Noutra altura, mais uma vez em Brands Hatch, e no princípio da sua carreira (quer dizer que ainda nem o Mundial SBK existia) o Terry Rymer estava em apuros, porque com o seu 1,88m, tinha desgastado um canto da tubagem do radiador de óleo a curvar, e um sistema em perda, ainda por cima a espalhar óleo pelas botas e pneus, não ia ajudar a voltas rápidas... Era preciso encontrar mangueira de malha de aço, rapidamente, mas todas as equipas inglesas, a poucos Km de casa, não traziam tal coisa, porque “se pode sempre ir buscar”.
Já os suecos, que eram na altura Anders Anderssen, agora técnico na Ohlins e Chris Lindholm, mais tarde campeão da Alemanha de SBK, carregavam um autocarro com tudo imaginável, pois estavam meses sem ir a casa. Fui chatear o Chris, que (como todos os suecos aliás) era uma simpatia, ele abriu uma das laterais bagageiras, e de entre a parafernália de compressores, ferramentas, tubos, caixas, tirou um rolo de mangueira de aço novinha, selado, que nunca teria em caso nenhum menos de uns 12 metros: “Tira o que precisares e volta a pôr!” foi tudo o que disse antes de voltar a dar atenção à sua moto.
Isto tornou-se uma constante, uma vez dentro da confiança de certas equipas, o tempo deles era mais precioso para me andarem a mostrar coisas do que o eventual material que eu necessitava, e já só chegava lá e “Posso ir ali procurar uma coisa?” Remexia no camião e levava o que precisava, devolvendo tudo escrupulosamente depois.
Com o Steve Parrish, agora já retirado como piloto e manager da Yamaha Loctite, na Hungria, aconteceu-me uma boa ao contrário: aí eu nem precisava de pedir para entrar no camião, porque tinha feito a longa viagem, através da França, Alemanha e Áustria viajando com eles. O Steve apanhou-me a mexer nos armários e perguntou: “Que procuras?” Eu estava a tentar ajudar um Irlandês paupérrimo, com uma RC30 colada com cuspo, daqueles que vem correr com patrocínios do talho, padaria e café locais e precisava de Loctite, cuja marca estava, pelo menos com 6 metros de largura, nas laterais do camião-caravana da Yamaha, como sponsor principal da equipa. “Não tenho - diz o Steve... - eles não me dão nenhuma!” ... mas por fim lá encontrei um tubito, depois de pedir ao mecânico Adrian Gorst, que depois faria carreira como técnico-chefe das Honda Castrol de Doug Polen e Aaron Slight e actualmente, depois de um período com as Honda HM de Riuichi Kyonari no Britânico, é verificador-chefe na Ilha de Man.
Mais insólito ainda, por ir ao revés da crença errónea que não há nada de comum entre carros e motos, aconteceu-me em Macau com Dave Woolams, um inglês do Norte, também veterano de Vila Real, que competia com uma Ducati 888. Durante todos os treinos, a moto falhava e não desenvolvia, e depois de muito coçar de cabeças e desmontar, chegaram à conclusão que só podia ser a bomba de gasolina. Fiquei a saber, dois anos depois muito útil para diagnosticar uma falha semelhante na Ducati da Pepsi-Galp no México, que as bombas– parecem assim um distribuidor, ou uma garrafa de ketchup de que saem dois terminais – podem estar a trabalhar, aparentemente na perfeição - quando se toca nos terminais com uma bateria fazem vrrrrr... mas depois se não estiverem a debitar 140 psi ou um brutalidade do género, o sistema electrónico Magnetti-Mareli da moto detecta essa baixa de pressão e falha por todos os lados.
Cabe aqui dizer que, estando a falar de 1990, nada mais usava injecção, nem portanto, bomba de combustível... até que um dos ingleses comentou: “por acaso, esses Fórmulas devem usar uma igual.” Mais não foi preciso para eu atravessar o parque de estacionamento subterrâneo que servia de “paddock”, direito a uma equipa Italiana de Fórmulas 3 com a credencial de imprensa bem à vista “Parla Italiano? blá-blá-blá” e trazer a dita bomba emprestada, na base do “devolves intacta ou compraste-a”, aos ingleses estupefactos. O Dave fez a prova sem problemas, ainda hoje é meu amigo no Facebook e só falta ajoelhar-se quando me vê!
Claro que quem diz arranjar peças, diz também ajudar a decorar
à pressa uma moto que caíra, ou até, por vezes, encontrar um substituto para um
piloto lesionado... como quando Tomaz Couto partiu um pé antes da prova de
Supersport de Donington e eu fui arranjar Chris White, um piloto local que
estava sem moto e andou na ZZR600 da Kawasaki Portugal em substituição.
Pouco depois, cerca de 1996, as coisas tornaram-se muito
mais profissionais nas SBK, como já tendiam a ser no Mundial, as equipas vinham
mais prevenidas e as oportunidades para um “tuga” descarado com jeito para
línguas fazer de embaixador diminuíram... mas não há dúvida que, pelo caminho,
desenrascaram muita gente, proporcionaram belas amizades e deixaram muitos
conhecimentos... e quando o “paddock” sossega para a noite, com os fans e caça-autógrafos
já partidos, muitos convites para jantar à pala!
andardemoto.pt @ 12-4-2018 06:44:19 - Paulo Araújo
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