
Paulo Araújo
Motociclista, jornalista e comentador desportivo
OPINIÃO
Histórias do Mundial - Degner, Kaaden e a MZ
Armas secretas nazis, venda de segredos
industriais, traição, passagem da cortina de ferro a salto para o Ocidente dentro da mala de
um carro... e grandes avanços tecnológicos. A história desta semana mais parece
ficção “estilo 007”, do que factos reais...
andardemoto.pt @ 6-12-2017 21:21:42 - Paulo Araújo
E no entanto, esta é uma história verdadeira que teve mais
influência na definição das motos de competição das quatro décadas seguintes, do que qualquer outro factor. Tem a ver com desenvolvimentos efectuados nos
motores a 2 tempos por uma pequena equipa do Leste, que mudaria para sempre a
forma de extrair potência desses motores.
Antes das dois tempos desaparecerem do
Mundial de Velocidade, primeiro nas classes mais pequenas e finalmente, em
2001, na classe rainha de MotoGP, o ciclo de explosão mais simples de um motor
a 2T, que dispensa válvulas à cabeça e complexos sistemas de distribuição,
tinha dominado por completo as várias classe do Mundial, das 50 às poderosas
500, sem esquecer os sidecar.
O Mundial de Velocidade, como o conhecemos, organizado em termos contínuos, teve início apenas em 1949. Mas tudo começara ainda antes disso, mais precisamente, na Segunda Guerra Mundial, durante a qual um engenheiro alemão de nome Walter Kaaden tinha trabalhado no famoso departamento de armas secretas de Hitler, em Peenemunde, no desenvolvimento das bombas voadoras V2, a ponto de, depois da guerra, os americanos lhe terem oferecido trabalho com Werner Von Braun, impulsionador do programa espacial norte-americano.
Kaaden, porém, preferiu regressar à sua cidade Natal de Zschopau (agora na parte Leste da Alemanha, dominada pelos comunistas) e começar a competir com pequenas MZ preparadas por si próprio, e com tanto sucesso que as autoridades o encarregam pouco depois, em 1953, de gerir a equipa de competição oficial da marca.
Desesperadamente descapitalizada, com um orçamento que mal dava para os pneus, a equipa começa a correr no Mundial... e depara-se com um problema: a marca MZ era parte da DKW que, em 1928, com mais de 100 mil unidades produzidas, era o maior fabricante de motos mundial. Em 1932 a DKW integraria a poderosa Auto-Union, com a Audi, a Horsch e a Wanderer. A união das 4 marcas ainda hoje é simbolizada nos quatro círculos entrelaçados do emblema da Audi.
Quando a DKW tinha ganho corridas no Tourist Trophy da Ilha de Man, antes da guerra em 1938, as suas motos eram sobrealimentadas, solução proibida pelas regras do novo mundial no pós-guerra. Havia, portanto que fazer alguma coisa que tornasse as motos de Zschopau competitivas de novo. Essa coisa foi a invenção da válvula rotativa, que trouxe à MZ a sua primeira vitória com Horst Fugner, no GP da Suécia em 1958, vindo a marca a acabar o mundial de 250cc em 2º lugar, nesse ano.
A invenção passou a alimentar os cilindros das MZs e, juntamente com as descobertas de Kaaden, sobre o aproveitamento da pulsação dos gases de escape dum motor a 2 tempos, foi fundamental para o desenvolvimento desse tipo de motores nos 40 anos seguintes. De facto, a alimentação convencional duma 2T através de janelas, em que o pistão cobre ou descobre no seu movimento de vaivém, não é passível de variação segundo o regime do motor.
A baixas rotações, as janelas ficam abertas muito tempo, o gás escoa-se e a pressão perde-se, enquanto que a altos regimes a troca é tão rápida que pode ser insuficiente, limitando as prestações e, no limite, causando a gripagem do motor.
Com a válvula rotativa, basicamente um disco de metal colocado entre a cambota e o carburador, a abertura das janelas passou a ser mais precisa, dando um tal incremento de potência, que a MZ125 de 1961 passou dos anteriores 8 cavalos para uns espantosos 25 - uma potência específica de 200 cavalos por litro, valor que não seria igualado por nada nos 30 anos seguintes.
Nessa altura, nas classes pequenas, só a Honda insistia nas 4 tempos, recorrendo a configurações exóticas, caríssimas de fabricar, como a RC142, a moto campeã de 1964, uma tetra cilíndrica transversal de 8 velocidades - que em 1965 passou para 5 cilindros e fazia 19.000 rpm! A Yamaha e a Suzuki tinham motores a dois tempos, que mal acompanhavam as MV Agusta, quanto mais a Honda. A primeira Suzuki 125 a chegar, em 1960, desenvolvia 13 cavalos, quase 10 a menos que as MZs de Fugner e Degner, o outro piloto da MZ da altura.
Entre 1957 e 1970, a marca competiu com sucesso nos Mundiais de 125 e 250 com pilotos como Mike Hailwood, Gary Hocking, Alan Sheperd, Luigi Taveri ou Dieter Braun, mas a estrela da casa era Ernst Degner.
Degner, provavelmente desiludido pela vida no bloco comunista e pelas dificuldades financeiras da equipa, (que apesar de terem os melhores motores, não podiam pagar aos pilotos e frequentemente “andavam à crava” de peças ou pneus velhos no paddock) deve ter contactado a Suzuki. O caso é que, aproveitando um GP no estrangeiro, Degner dá o salto, supostamente escondido na mala de um carro. O piloto refugia-se na Alemanha Ocidental, e começa a trabalhar, em segredo, para a Suzuki, a quem fornecera (trocara por uma pequena fortuna, dizem alguns!) os planos de motor de Kaaden.
O alemão apareceria no ano seguinte a pilotar a Suzuki RM62 de 50cc, que se torna na primeira 2T a ganhar um Mundial, em 1962, precisamente com Degner aos comandos. Cerca de um ano mais tarde, com a tecnologia de Kaaden “importada” por Degner, a Suzuki RS67 de 1963, uma maravilha de miniaturização, desenvolvia 42 cavalos do seu V4 de 124 cc, a umas astronómicas 16.500 rpm! Essa moto deu à Suzuki, que contratara o Neozelandês Hugh Anderson como piloto, o primeiro de três títulos na classe de 125.
A MZ ainda se foi aguentando, numa
corda bamba entre a despesa necessária para manter uma equipa no Mundial e o
prestígio que trazia ao descreditado regime da Alemanha de Leste, cujo grande
prémio, (a par com o da Checoslováquia, os únicos acessíveis aos cidadãos dos
países comunistas) batia todos os recordes de espectadores, com números de
150.000 atingidos vulgarmente.
Eventualmente, as motos prateadas e verdes acabaram por recolher ao museu, mas nos seus motores teve origem a mais espantosa evolução da história das motos a dois tempos, que se generalizou a todas as motos de GP que se seguiram.
Todas ficaram a dever às MZs verde e prata dessa época, os princípios utilizados para dotar os seus motores de 2 tempos duma potência específica inigualável por uma 4T de igual cilindrada... até que, mais por razões comerciais que outra coisa, estas desapareceram para dar lugar à era moderna das MotoGP.
andardemoto.pt @ 6-12-2017 21:21:42 - Paulo Araújo
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