Paulo Araújo

Paulo Araújo

Motociclista, jornalista e comentador desportivo

OPINIÃO

A alegria do faça-você-mesmo

Deve haver poucas coisas na vida que dão mais satisfação imediata do que ser capaz de efetuar uma reparação eficientemente.

andardemoto.pt @ 18-7-2018 23:32:12 - Paulo Araújo

De fazer uma coisa avariada, ou partida, funcionar outra vez, à custa do nosso intelecto, jeito de mãos, conhecimentos, ou, com um bocado de sorte, uma combinação de todos esses três fatores. Acho que desmontar coisas para ver como funcionam é endémico a rapazes – com talvez uma ou outra rapariga pelo meio dotada da mesma curiosidade. Desde pequeno que o fiz, sendo uma das primeira memórias, para ai com 5 anos, apanhar um violento choque elétrico quando enfiei as fichas de uma linha do comboio elétrico diretamente na parede, sem o benefício de passarem pelo transformador primeiro.

Já montar de novo e pôr a funcionar era mais difícil. Havia sempre molas ou outras peças pequeninas que saltavam para todos os lados quando finalmente a peça principal entregava o seu segredo e se abria. Sem o benefício de ter visto o todo a funcionar, por vezes era difícil imaginar como teria de ser montado. Por vezes, o montar mesmo era o problema, especialmente quando há peças sob tensão ou molas de corda envolvidas. Só muito mais tarde percebi, com amigos mecânicos de competição, que há N maneiras de fazer batota, desde atar as pastilhas que teimam em cair da pinça com fita, que depois de tudo apertado se arranca facilmente, a usar um bocado de corda para prender sob tensão a mola do kick de uma Vespa para fechar a tampa e ao mesmo tempo manter o kick sob tensão – coisa que, sem o benefício da tal corda, parece impossível.


Em termos de motos, a minha aprendizagem começou muito mais tarde, pelos 19 anos – antecedida por um período a estragar bicicletas, trilhando câmaras-de-ar ao mudar os pneus, moendo cabeças de porcas e partindo veios de pedais por aperto excessivo, num ciclo que me devia ter treinado para enfrentar, alguns anos depois, os proverbiais parafusos com a consistência de queijo das motos japonesas da altura, mas nem por isso ajudou com grande ensinamentos. Tive de aprender a fazer tudo de novo, e fiquei a perceber porque têm esses parafusos normalmente um pequeno pico na zona periférica- é para assentar um punção quando, a cruz da cabeça desfeita sem conseguir remover o parafuso, se passa à fase seguinte: remoção com um martelo.

Assim, amassei cabeças, parti parafusos, moí porcas, risquei peças quando a ferramenta escapava de repente, normalmente esfolando também os nós dos dedos e acompanhando a operação com liberal uso de palavrões, para os quais felizmente podia recorrer a cerca de 8 línguas para evitar ofender alguém nas proximidades – o árabe um favorito, pela sonoridade e criatividade das expressões utilizadas, que frequentemente envolvem a invocação de pragas variadas até à 5ª geração dos descendentes da peça ofendedora.

Inevitavelmente, aprendi. Aprendi a ter embebida no pulso uma chave dinamômetro, que me permitia julgar do aperto correto, o que os mecânicos nacionais chamam “um-bocadinho-antes-de-partir”. Aprendi a usar primeiro uma chave de caixa, ou luneta, que apoia a porca em 6 sítios, e só depois, quando ela já gira livre, retroceder para a mais simples de usar chave convencional de 2 apoios. Em parte, fui encorajado por dois fatores: O preço da mão-de-obra, sempre muito mais elevado na minha Inglaterra de então que cá e, tendo começado a andar de moto nos anos setenta de “boom” de vendas – vendiam-se um quarto de milhão de motos por ano no Reino Unido!- os prazos que por vezes nos davam, da ordem das 3 semanas, para aceitar uma moto na oficina.


Isto porque primeiro, ingenuamente, tendemos a acreditar na lógica das marcas que nos querem obrigar a ir a uma oficina “da marca”. Nada podia ser um maior disparate, normalmente- senão vejamos: quando levamos ao mecânico da esquina, ele é provavelmente um técnico mais velho que, após longa experiência em resolver problemas, se estabeleceu por conta própria. Depois, nada o obriga a substituir peças ainda boas por novas, ao contrário do que diz no manual que o estagiário da marca de prestígio utiliza quando, uma vez recebida a moto, ele começa a trabalhar nela.

Cedo, muito cedo, o custo da mais pequena reparação parecia exorbitante comparado com a aquisição da(s) ferramentas(s) necessárias para fazer o trabalho nós mesmos o que ainda por cima, desenvolve uma relação com a moto que faz com que, em 40 anos de viagens, quase nunca tenha ficado “apeado”- retificadores Honda a honrosa exceção a requerer recolha pela assistência em viagem.

E a própria aquisição de ferramenta torna-se numa escalada, contemplando itens mais sofisticados à medida que a necessidade e a nossa capacidade nos permite enfrentar trabalhos mais complexos. O primeiro alicate de freios, ou chave de impacto, mais tarde já na competição o primeiro alicate NATO para arame de frear… Aqui devo confessar que tinha uma filosofia própria – dada a minha, durante muitos anos, ignorância prática, senão teórica, quase total, das partes internas de um motor –– operava uma simples divisão de trabalho: Motor, eles, ciclística, eu. Assim, mudar ou ajustar correntes, ou pastilhas tornou-se rotina, coisas como rolamentos de embraiagem ou distribuição confiava a uma oficina.

Os últimos bastiões de áreas cinzentas no meu conhecimento finalmente dissiparam-se quando comecei a correr e desmontar as cabeças de uma Yamaha TZ de Grande Prémio para mudar juntas ou segmentos se tornou rotina, mas mesmo assim, a afinação da mistura gasolina-ar num carburador iludiu-me muitos anos, e ainda agora não é intuitiva. Necessita muito coçar de cabeça e consultas ao You Tube – ah, se tivesse havido Google nesses anos!

Com o conhecimento do que fazer, vem inevitavelmente o conhecimento de com que ferramenta melhor o empreender e das diferentes características do material em uso- lembro-me de polir porcas numa rotativa só para as ver enferrujar 2 dias depois, pois não tinha percebido, que, numa peça de ferro, estava a remover a cobertura de metalização que as protegia da oxidação- facto que me tornou fan irredutível do aço inox. Paralelamente, apreciamos as diferenças de que a nacionalidade imbui cada marca- numa alemã, podem apostar que tudo o que saiu, entra de novo sem partir nada, impossível numa chinesa e até nalgumas japonesas. Numa italiana, o acabamento lindo original pode já não estar lá e ser impossível de recuperar quando chegamos à fase de montagem.

Agora, que sei praticamente tudo sobre motores e até uma injeção eletrónica parece simples, um novo inimigo se levanta… A vista já não ajuda! Felizmente, nos 30 anos intervenientes, fiz muitos amigos em oficinas e sei exatamente aonde levar o quê para obter os melhores resultados… por vezes, até me chegam a cobrar alguma coisa!

andardemoto.pt @ 18-7-2018 23:32:12 - Paulo Araújo

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